terça-feira, julho 05, 2005

Capuchinho vermelho dos tempos modernos - para a Anabela

A pestana do lobo



Se não fores ao bosque nunca acontecerá nada e a tua vida jamais começará


- Não vás ao bosque, não vás – disseram eles.
- Porque não? Porque não posso ir ao bosque esta noite? – perguntou ela.
- No bosque vive um lobo enorme que come pessoas como tu. Não vás ao bosque, não vás ao bosque por nada.
Mas, naturalmente, ela foi ao bosque e como era de esperar, encontrou o Lobo, tal como eles lhe tinham advertido.
- Vês? Já te tínhamos avisado – grasnaram.
- Esta é a minha vida, não é um conto de fadas, tontos – replicou ela. - Tenho de ir ao bosque e encontrar-me com o lobo senão a minha vida jamais poderá começar.
Mas o lobo que ela encontrou tinha caído numa armadilha, e tinha a pata presa.
- Socorro, ajuda! Ai, ai, ai! – gritava o lobo. – Socorro ajuda-me e dar-te-ei a justa recompensa! – acrescentou.
- E como sei que não me vais fazer mal? – perguntou-lhe ela, porque a sua missão era fazer perguntas. – Como sei eu que não me matarás e me deixarás reduzida a puros ossos?
Porque isso é o que fazem os lobos neste tipo de contos.
- Péssima pergunta – disse o lobo. – Terás que confiar na minha palavra.
E o lobo redobrou os seus uivos e lamentos.
Ai, ai, ai!
Só há uma pergunta que merece a pena fazer formosa donzela… Onde está a alma?
- Oh lobo, vou correr o risco! Vamos lá!
Abriu a armadilha, o lobo tirou a pata e ela envolveu-lha com ervas medicinais e outras plantas.
- Oh obrigado, doce donzela, mil obrigados – disse o lobo lançando um suspiro.
Mas como tinha lido demasiados contos que não devia, ela exclamou:
- Bom, agora podes matar-me, anda, terminemos tudo rápido.
Mas não foi isso que aconteceu. Em vez disso, o lobo estendeu a pata e apoiou-a no braço dela.
- Sou um lobo de outros tempos e lugar – disse. E arrancando uma pestana do olho entregou-lha dizendo: - Usa-a e procura ser sábia. De agora em diante saberás quem é bom e quem não o é tanto. Olha através do meu olho e verás tudo com claridade.
Por deixar-me viver te ofereço viver como nunca viveste na tua vida. Recorda que só há uma pergunta que merece a pena fazer, formosa donzela… Onde está a alma?

E assim a donzela regressou à aldeia alegrando-se por estar viva. E esta vez quando eles lhe disseram, “Fica aqui e casa-te comigo”, ou “Faz o que te digo”, ou “Diz o que eu quero que digas, mas que tudo fique em segredo como o dia em que chegaste”, a donzela agarrou a pestana do lobo olhou através dela e viu os seus motivos tal como nunca os tinha visto. E a vez em que o talhante pesou a carne ela olhou através da pestana do lobo e viu que pesava também o seu polegar.
E olhou para o pretendente que lhe dizia “ Sou aquele que te convém” e viu que não lhe convinha para nada.
E desta maneira e muitas mais salvou-se não de todas mas sim de muitas desgraças.

Mas além disso com esta nova visão, não só viu o astuto e o cruel mas também o coração dela se tornou imensamente grande, pois olhava as pessoas e voltava a calibrá-las graças ao dom que lhe tinha outorgado o lobo que ela tinha salvo.
E viu os que eram verdadeiramente bons e aproximou-se deles, encontrou o seu companheiro e permaneceu a seu lado todos os dias da sua vida, percebeu os valorosos e aproximou-se deles, captou os fiéis e uniu-se a eles, viu a perplexidade por debaixo da cólera e apressou-se a dissipa-la, viu o amor com os olhos dos tímidos e inclinou-se para eles, viu sofrimento nos calados e cortejou o seu riso, viu necessidade no homem sem palavras e falou-lhe, viu fé no mais fundo da mulher que afirmava não a ter e voltou a acender-lha com a sua.
Viu todas as coisas com a pestana do lobo, todas as coisas verdadeiras e todas as coisas falsas, todas as coisas que iam contra a vida, e todas as coisas que iam a favor da vida, todas as coisas que só podiam ver-se através dos olhos de aquele que pesa o coração com o coração e não só com a mente.
Assim descobriu que era verdade o que dizem, que o lobo é a mais sabia das criaturas. Se prestas atenção, o lobo quando uiva faz sempre a pergunta mais importante, não onde está o alimento mais próximo, a luta mais próxima ou a dança mais próxima, mas sim a pergunta mais importante para ver dentro e por detrás, para pesar o valor de tudo o que vive… Onde está a alma? Onde está a alma? Onde está a alma?
Vai ao bosque, vai depressa. Se não fores ao bosque nunca acontecerá nada e a tua vida jamais começará… Vai ao bosque, vai depressa…
História de Clarissa P. Estes
Fotografia gentilmente cedida por Simão Carvalho

1 comentário:

Anónimo disse...

se não fores ao bosque.....
cada vez gosto mais de ir ao bosque...

e tu? C3?

anabela.